“Reconhece a queda e não desanima”, por Valdelice Teodoro
Eu cheguei a uma fase da vida que a gente conquista a capacidade de olhar para trás e entender o sentido da história que construiu. Eu gosto de existir e posso garantir que nunca me senti tão viva quanto agora que aprendi a refletir sem me deixar levar pela pressa da decisão. Engano acreditar que temos poder sobre os acontecimentos, a fluidez da vida é maior que nossas convicções e ações individuais.
Verdade que atravessamos a história para entender a lógica dos acontecimentos. Pior de tudo é que a gente esquece as melhores lições quando mais precisa lembrar. Na hora da derrota, somos mais humanos que nunca e nos foge a pouca elevação de consciência que duramente conquistamos ao longo desse clarão de existência a que chamamos de vida.
Minha história se confunde com a dos profissionais das técnicas radiológicas, trabalhadores que aprendi a admirar e a quem dediquei maior parte da minha trajetória. Junto com essa categoria, passei pelas emoções, situações e experiências mais significativas e marcantes que se possa imaginar enquanto ser humano.
No final do mês passado, assim como qualquer profissional que trabalha pelo exercício legal das técnicas radiológicas, fiquei triste com a publicação da notícia sobre uma decisão judicial que ofende a Constituição Federal e atenta contra o marco regulatório que normatiza a nossa profissão. Um pouco mais calma, depois de receber o impacto fulminante do desastre nosso de cada dia, consegui entender o assessor jurídico do CONTER me explicar que é uma decisão da qual podemos recorrer e que não alcança a coletividade, que serve apenas para resolver a situação colocada no processo.
O Sistema CONTER/CRTRs fiscaliza o exercício profissional das técnicas radiológicas sistematicamente em todo o território nacional. Obviamente, devido a nossa infraestrutura, não conseguimos ainda chegar a todos os lugares. Entretanto, temos nos esforçado, principalmente, para atender às denúncias graves que recebemos diariamente. Traçamos nossas rotas de fiscalização em cima das demandas mais latentes e que ferem o interesse coletivo.
Dessas fiscalizações, derivam as recomendações, notificações, autuações e multas para as empresas e pessoas que infringem o nosso conjunto normativo e oferecem risco à saúde da população. Desses instrumentos de fiscalização, nascem os processos administrativos, dos quais mais tarde derivam os processos judiciais que hoje entopem as vias do poder judiciário e seguem sem solução definitiva. Em suma, a novela é essa, salvo raros desfechos isolados.
Atualmente, existem processos individuais e ações civis públicas sobre o exercício ilegal das técnicas radiológicas tramitando nos tribunais do Distrito Federal, de Goiás, Santa Catarina, Paraná, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Pará e São Paulo. Nesse último estado, a situação é mais grave, pois o CRTR 5ª Região está impedido de fiscalizar os trabalhadores que não fazem parte do seu quadro social.
Em todos os processos que somos parte, temos feito uma defesa sincera das nossas prerrogativas profissionais, sem bairrismo. Baseados no currículo efetivo dos cursos técnicos e tecnológicos de Radiologia, temos feito comparações para afirmar convictamente que sem educação não há competência, não há boas práticas.
Ao longo dos últimos dez anos, o CONTER brigou em todas as oportunidades que teve contra quem quer que seja, independentemente do tamanho, para evitar que trabalhadores sem formação adequada colocassem em risco a segurança e a saúde da população nos serviços de Radiologia. Ganhamos muitos desses processos judiciais e perdemos outros tantos, no meu entendimento, por falta de sensibilidade do poder judiciário, que ainda não alcançou o grau de complexidade que a matéria exige.
Até hoje, não há uma definição judicial clara sobre a diferença entre radiografia e Radiologia. Eu prefiro me apegar aos raros lampejos de consciência dos magistrados que conseguiram enxergar o lado humano dos processos.
Sobre esses processos, gostaria de deixar clara uma verdade absoluta: nenhum deles possui repercussão geral, ou seja, nenhuma sentença proferida até hoje serve como parâmetro definitivo para julgar os casos gerais. As decisões que existem são precárias e serviram apenas para resolver as questões pontuais que se colocaram. Portanto, não aceitem jurisprudências ultrapassadas e sem profundidade como um caminho para o futuro, pois é nossa obrigação ultrapassar as decisões injustas.
A história da Radiologia no Brasil mostra que os profissionais das técnicas radiológicas sempre enfrentaram realidade difícil. Quando eu assumi essa profissão, ninguém me disse que seria fácil. A nossa vida só faz sentido quando nos dedicamos a melhorar a vida das outras pessoas que nos rodeiam, só assim a existência faz sentido, todo o resto é ilusão.
Todas as vezes que fui convidada a pensar com o estômago, aceitei o desafio de tentar fazer isso com a cabeça, em grupo, de coração tranquilo e consciência limpa. A virulência da raiva e da resposta imediata não leva a lugar agradável. Por isso, o CONTER não responde a imediatismos e baixezas.
Nós sabemos da dificuldade de conquistar o mercado de trabalho por meio de processos judiciais. Por isso, nós vamos assegurar nosso lugar ao sol por meio da competência e do trabalho. Portanto, busquem se qualificar, se especializar e compartilhar conhecimento com os colegas de profissão. Esse é o caminho para uma classe consolidada que tem pleno potencial de crescimento.
Além de fiscalizar o exercício profissional, o Sistema CONTER/CRTRs vai intensificar o trabalho das comissões de educação para aumentar a oferta de capacitações, cursos e especializações nas cidades e nos estados. Dessa forma, esperamos diminuir o déficit de educação que o Brasil atravessa e oferecer ao mercado mão-de-obra qualificada para atender as demandas da população.
Os empresários gananciosos e governos inescrupulosos que insistirem em contratar profissionais sem formação vão esbarrar na falta de técnica, no amadorismo e na inconsequência dos seus atos. Vão encontrar nossa resistência, que é alimentada pela energia de vocês. Quem acoberta o exercício ilegal das técnicas radiológicas no Brasil não vai ter um dia de paz, podem crer nisso.
Ao considerar a dura realidade que enfrentamos, chego a pensar que fracassamos. Mas esse sentimento é passageiro, pois faço a mesma analogia sobre a vida que uma pessoa de fibra quando descobre que está enferma: o que te faz vencedor não é ganhar da doença, é a forma de você se comportar diante da dificuldade que ela impõe. Você pode morrer, só não pode se entregar. Dessa maneira, você para sempre viverá.
Ao longo desse processo de deterioração do mercado de trabalho, já recebi várias ofertas de retaliação contra quem pensa diferente de nós. Várias vezes, nos eventos que participei pelo país afora, ouvi gente dizer para eu criar uma resolução e permitir a inscrição de biomédicos nos quadros Sistema CONTER/CRTRs. Isso seria uma anomalia. Nunca aceitei as provocações, pois sempre entendi que não era dessa forma que conseguiríamos reverter o quadro de tensão entre as duas categorias.
Como presidente do CONTER teve vezes que eu perdi, mas sempre de cabeça erguida, pois acredito na luta da classe e dos trabalhadores que represento e, por isso, eu sempre ganhei. Como diria Mário Quintana, “Todos estes que estão aí, atravancando meu caminho, eles passarão. Eu passarinho.”
A vida é prática, mas diante dela nunca abri mão da minha intuição de mulher. Outro dia, ouvi a música “Volta por cima”, do Paulo Vanzolini. Essa canção resume bem qual é o espírito da coletividade e como eu me sinto diante de cada barreira que se coloca. Ouçam e deixem a esperança de um futuro melhor invadir o coração de vocês:
Chorei
Não procurei esconder
Todos viram, fingiram
Pena de mim não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Um homem de moral
Não fica no chão
Nem quer que mulher
Lhe venha dar a mão
Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima
O poder judiciário nem sempre é justo, a vida sempre é. Apesar deles, como ensinou Chico Buarque, amanhã há de ser outro dia, sinta:
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar deles, eu resisto. Por vocês, eu estou aqui!
Cordial abraço da colega de profissão,
VALDELICE TEODORO
Presidenta do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER)
FONTE: CONTER
http://www.conter.gov.br