CONTER rebate secretário de Saúde de Palmas/TO e reafirma posição em defesa da Radiologia e da saúde 100% pública
Após publicação de matéria em que o Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER) aponta indícios de sobrepreço na terceirização dos serviços de Radiologia da saúde pública da cidade de Palmas, capital do Tocantins, o secretário da pasta, Whisllay Maciel Bastos, saiu em defesa deste modelo de contratação.
De maneira bem didática, vamos contrapor as colocações feitas pelo secretário em entrevistas concedidas à Rádio CBN e ao Portal Conexão Tocantins, com o objetivo de esclarecer aos leitores por que chegamos à conclusão de que fazer a contratação dos servidores diretamente – sem o intermédio de uma empresa privada com fins lucrativos– é largamente mais econômico para o setor público e justo com a sociedade.
Antes de qualquer argumentação, que necessariamente vai ser longa, gostaríamos de enfatizar que essa discussão seria desnecessária, pois a saúde pública é dever do Estado e a terceirização de atividade-fim na área da saúde é inconstitucional, a ver:
Constituição Federal de 1988
Art. 30. Compete aos Municípios:
(…)
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
Art. 37.
(…)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 19/98)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
…
§ 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
Como se depreende da Carta Magna, saúde pública não deveria servir para dar lucro a empresas, deve servir às necessidades da população ao menor custo possível.
Em casos excepcionais, quando os municípios pobres ou do interior não têm condições ou infraestrutura para oferecer o serviço radiológico, admite-se a ajuda complementar de organizações da iniciativa privada. Entretanto, nesses casos, o poder público deve recorrer a entidades filantrópicas ou sem fins lucrativos. Diferente do que é feito quando os recursos públicos são empregados para o comércio da saúde pública.
A cidade de Palmas não precisa da iniciativa privada para operar o serviço público de Radiologia. Trata-se de uma capital, com bom índice de desenvolvimento humano. Na cidade, existem 243 técnicos e 5 tecnólogos em Radiologia formados e legalmente habilitados, prontos para concorrer e prestar o serviço público. Em todo o Estado do Tocantins, são 722 técnicos e 17 tecnólogos em Radiologia com bom nível de formação. Portanto, não há justificativa e nem necessidade de burlar o princípio constitucional do concurso público.
Sobre as situações excepcionais, a Lei Federal n.º 8.080/90 diz o seguinte:
Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.
Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.
A terceirização das técnicas radiológicas, feita pela administração pública de uma capital de estado, não é necessária e desconsidera as normas elementares de direito público, os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência.
Os poucos casos que chegam à esfera judiciária têm sido respondidos de forma unânime, de modo a ratificar o que dispõe a Constituição: a saúde é dever do estado e não pode ser outorgada à empresas particulares, ainda que apenas em sua execução. Ao final do texto, emprestamos a jurisprudência que confere esse status ao assunto.
A Lei n° 8.080/1990 trata de forma clara sobre a complementariedade da iniciativa privada nos serviços públicos de saúde, nas hipóteses em que a estrutura do município for insuficiente para atender a população de determinada região, vedando, por consequência, sua atuação de forma substitutiva. Entende-se por participação complementar a execução de atividades classificadas como atividades-meio da administração pública (limpeza, conservação, segurança, etc), e não daquelas classificadas como atividades-fim (radiologia, enfermagem, medicina, etc).
Aliás, não cabe a justificativa de que a gestão é pública e apenas a operação não, como se denotou nas entrevistas posteriores à denúncia, pois justamente essa configuração fragiliza o serviço público. Obviamente, ninguém quer abrir mão do cargo de secretário de saúde ou diretor de um hospital. Quer mesmo é facultar a outro uma responsabilidade que seria primordialmente sua como chefe do serviço público.
FATO OBJETIVO
Em 4 de julho de 2014, a Secretaria de Saúde de Palmas renovou por mais um ano contrato de terceirização do setor de Radiologia do município, no valor de R$ 4.612.704,84.
Em 10 meses, do dia 11 de julho de 2014 até o dia 11 de maio de 2015, a administração pública repassou deste contrato o valor de R$ 2.196.345,07 à iniciativa privada, pela prestação desses serviços radiológicos.
Na comparação entre um ano e outro, é possível perceber um aumento significativo desses repasses. No ano de 2014, a Secretaria de Saúde pagou R$ 1.443.168,67 à empresa terceirizada que presta serviços de Radiologia ao município. Apenas nos cinco primeiros de 2015, este valor já passou dos R$ 918 mil.
Tem um aspecto importante. No Portal da Transparência da Prefeitura de Palmas, na seção de pagamentos diretos, onde estão divulgados esses dados oficiais, não existe a especificação dos serviços que são prestados pela empresa terceirizada. Não dá para saber necessariamente a que trabalho prestado os diversos pagamentos correspondem.
Considerando o tamanho da cidade e a população de Palmas, podemos concluir que, com esse investimento ou valores bem mais modestos, seria possível manter um serviço radiológico totalmente público e de qualidade, com servidores de carreira e manutenção equilibrada.
Para se ter uma margem de comparação, fizemos uma consulta ao hospital brasileiro que é referência nacional no tratamento das vítimas de acidentes do trânsito (por razões de embargo, não vamos citar o nome da instituição, mas podemos repassar a informação oficial às autoridades, se for necessário). Trata-se um dos maiores e melhores centros de ortopedia e traumatologia que temos. Lá, uma equipe de 38 profissionais das técnicas radiológicas, com especialistas, custa R$ 120 mil por mês. Essa estrutura é significativamente maior que a do sistema público de Palmas e, consideravelmente, mais em conta para os contribuintes.
Sobre a manutenção dos equipamentos, o hospital que citamos para comparação possui três salas de raios X convencionais, seis aparelhos portáteis, quatro intensificadores de imagem em arco C e sala de TC. O contrato inclui a reposição de peças. O custo mensal é de R$ 40 mil.
Prejudica ainda mais o interesse público quando os equipamentos usados no serviço público são da empresa privada, pois a prefeitura acaba pagando pela manutenção dos aparelhos que nem são dela.
O que acontece em Palmas é uma inovação, pois não é terceirização, chegou ao nível do que conhecemos hoje como quarteirização ou pejotização. Os dois grandes beneficiários do contrato firmado com o poder público são os sócios, donos da empresa, que não prestam o serviço, apenas submetem outros trabalhadores a um regime de contratação que tem como prerrogativa a fragilização máxima das relações de trabalho. Em resumo, a empresa é contratada apenas para mediar a contratação de profissionais e transformá-los em operários, sem acesso aos direitos sociais básicos de um trabalhador previstos na legislação federal.
O problema é mais sério que parece. Um profissional terceirizado não tem estímulo para trabalhar, pois não tem estabilidade, não tem alma, não tem autonomia, não tem opinião e é obrigado a se submeter a condições não boas de trabalho. Caso não concorde com qualquer situação imposta, não pode reclamar, pois pode ser demitido de uma hora para outra sem o menor constrangimento.
RETALIAÇÃO
Em dezembro de 2013, a Prefeitura de Palmas lançou edital para a contratação de técnicos em Radiologia, com carga horária de trabalho acima do permitido e salário abaixo do piso nacional previsto nos Artigos 14 e 16 da Lei n.º 7.394/85.
Diante da ilegalidade, o Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 9ª Região (CRTR 9ª Região) entrou com mandado de segurança e obteve liminar, que obrigava o poder público a retificar o edital de acordo com a legislação federal.
O concurso foi realizado no primeiro semestre de 2014, todos os aprovados foram convocados, menos os técnicos em Radiologia.
O CONTER acredita que o fato de não haver carreira pública para este profissional no serviço pública de Palmas até hoje se deve a isto, entre outros interesses particulares.
A alegação de que o concurso público era apenas para cadastro reserva não prospera, pois na medida em que existe a necessidade da contratação de pessoal para a prestação de serviços, é lógico que seria racional convocá-los de acordo com a colocação de cada um. Isto seria justo, não é justo entregar a função pública à iniciativa privada sem necessidade ou justificativa válida.
Aliás, deixamos claro à população de Palmas que não é exclusividade da cidade de vocês esse tipo de situação. Cada vez mais, essas empresas terceirizadoras avançam sobre o SUS e comprometem sua principal prerrogativa, que é a universalização do atendimento à população.
A municipalização da saúde levou os gestores a esta condição de dependência das empresas privadas, pois esses não acreditam na sua própria competência e capacidade de gerir o serviço público sem delegar responsabilidades constitucionais. Afinal, ao terceirizar, o gestor se exime da culpa quando o sistema não funciona. Fácil.
Francamente, entendemos que o secretário de Saúde de Palmas pense diferente de nós, acreditamos na honestidade intelectual do senhor Whisllay quando defende a eficiência da iniciativa privada e a necessidade de recorrer a essas empresas para cumprir sua obrigação legal.
Acontece que para a maioria dos políticos, que não usam o SUS, a presença de uma empresa particular no setor público passa a falsa sensação de que as coisas estão funcionando, mas é só impressão, que não resiste à reflexão crítica profunda, como veremos ao final deste texto.
JURISPRUDÊNCIA
Já existe uma larga discussão a esse respeito. Um caso emblemático é o Mandado de Segurança de n° 2000.001.048041-8, impetrado pelo sindicato dos médicos do Rio de Janeiro contra o secretário de Saúde. Na petição inicial, o sindicato alegou que o município publicou edital de licitação para contratar entidades privadas para executarem atividades-fim nas Unidades Auxiliares de Cuidados Privados (UACPC), contratação essa que afrontaria ao Art. 37, inciso II, da Constituição Federal.
A sentença declarou a ilegalidade do ato administrativo, determinando a anulação da licitação que resultou na contratação de uma empresa para a prestação dos serviços públicos de saúde. O município recorreu da sentença, mas o tribunal manteve a decisão e afirmou que o serviço de saúde pública é essencial e não pode ser terceirizado. Veja, abaixo, trecho do acórdão:
“O serviço público de saúde não pode, e não deve, ser terceirizado, admitindo o art.197 da Constituição Federal, em caráter complementar, permitir a execução dos serviços através de terceiros. O caráter complementar não pode significar a transferência do serviço à pessoa jurídica de direito privado.” (AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 445.167 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO 28/08/2012 DJe 19/09/2012)
Contrariando o acórdão, o município do RJ interpôs Recurso Especial e Recurso Extraordinário. O REsp teve seguimento negado. Da mesma forma, o ministro Carlos Ayres Brito negou seguimento ao RE, destacando que a regra das contratações é o concurso público:
“A administração pública direta e indireta, ao prover seus cargos e empregos públicos, deve obediência à regra do concurso público. Admitem-se somente duas exceções, previstas constitucionalmente, quais sejam, as nomeações para cargo em comissão e a contratação destinada ao atendimento de necessidade temporária e excepcional.” (RE 445167 RJ RELATOR CARLOS AYRES BRITO JULGAMENTO 18/12/2009 PUBILCADO DJe 026 DIVULG 10/02/2010 PUBLIC 11/02/2010)
Insatisfeita, a prefeitura ainda interpôs Agravo Regimental contra a decisão que negou seguimento ao RE, mas o relator Cezar Peluso negou seguimento à possibilidade da prestação de serviços públicos por profissionais não concursados:
“[…] os cargos inerentes aos serviços de saúde, prestados dentro de órgãos públicos, por ter a característica de permanência e ser de natureza previsível, devem ser atribuídos a servidores admitidos por concurso público, pena de desvirtuamento dos comandos constitucionais referidos.
[…] é certo que o texto constitucional faculta, ao Estado, a possibilidade de recorrer aos serviços privados para dar cobertura assistencial à população, observando-se, as normas de direito público e o caráter complementar a eles inerentes. Todavia, não é essa a discussão aqui travada, mas sim, a forma como a Municipalidade concretizou o ato administrativo, emprestando-lhe característica de contratação temporária, desvirtuada do fim pretendido pelo artigo 197 da CF/88. Na hipótese, os serviços contratados não podem ser prestados em órgãos públicos, onde necessariamente, deveriam trabalhar profissionais da área de saúde, aprovados em concurso público, a teor do artigo 37, II, da CF/88 (fls. 422/423).”(AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 445.167 RIO DE JANEIRO, RELATOR MIN. CEZAR PELUSO, 28/08/2012 DJe 19/09/2012)
Não obstante, vale lembrar que em 2013 a Prefeitura de Palmas se comprometeu, diante do Ministério Público, sob pena de R$ 50 mil, a somente contratar profissionais mediante concurso público. A contratação de uma empresa terceirizada burla o acordo, sob uma nova interpretação que contraria o que foi assinado no TAC.
OS CASOS DE SP
Ao mesmo tempo em que a qualidade da saúde pública no Brasil atinge níveis estarrecedores, ao ponto de hospitais públicos mais parecerem cenários de um campo de batalha, com pacientes em estado grave sendo atendidos em corredores e cadeiras, já que não há quartos ou leitos, isso quando são atendidos, tornou-se extremamente comum o discurso de que a terceirização da saúde pública seria o caminho para a solução dos problemas.
Tal defesa da terceirização da saúde costuma omitir a informação de que ela já vem sendo praticada no Brasil, em larga escala, há muitos anos.
De fato, há mais de uma década, com a entrada em vigor de diplomas legais passaram a encorajar a contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Também não é lembrado que no mesmo período a qualidade da prestação da saúde à população desabou de forma assustadora.
Os objetivos deste artigo são bastante singelos, e passam longe de discussões doutrinárias: desejo aqui fazer apenas um breve relato dos casos envolvendo a terceirização de saúde que, na condição de membro do Ministério Público do Trabalho em uma das mais desenvolvidas regiões do país, tomei conhecimento e atuei. O relato diz respeito, portanto, apenas a fatos ocorridos nos últimos quatro anos, desde que me removi à Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara.
Venho fazer tal relato porque, ao que me parece, a maioria da população não sabe exatamente de que forma são realizadas tais contratações envolvendo a terceirização da saúde pública, e por falta de informação acaba admitindo passivamente o discurso de defesa dessas terceirizações.
O primeiro caso de terceirização da saúde com o qual me deparei, atuando perante a Procuradoria de Araraquara, dizia respeito à terceirização integral do serviço do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) de um município. A organização social escolhida tinha contratado empregados e vinha praticando diversos ilícitos trabalhistas, motivo pelo qual o caso chegou ao conhecimento do Ministério Público.
Descobriu-se que o ente privado e o Município haviam celebrado um termo de parceria que previa “a execução de atividades relativas ao apoio, aprimoramento, desenvolvimento, manutenção e gerenciamento de ações da Saúde”, ou seja, um objeto completamente genérico, que não informa de fato o que seria feito pela organização contratada. Apesar disso, o valor a ser pago pelo Município não era nada modesto, correspondendo a mais de 1,5 milhão de reais.
Desde a celebração desse termo de parceria, e apesar de não haver indicação precisa do seu objeto, aquilo que a organização passou efetivamente a realizar foi assumir a gestão do SAMU, serviço que passou a ser por ela administrado.
Aproximadamente seis meses depois, o município e a organização social celebraram um termo aditivo à parceria, prevendo agora, de forma expressa, a terceirização do SAMU. Quer dizer, do ponto de vista formal, estaria sendo “acrescentada” à parceria a terceirização do SAMU, não obstante fosse exatamente isso que a organização já estivesse explorando há seis meses, a partir do termo de parceria original. Mas introduziu-se outra mudança fundamental: o valor da contratação passou de 1,5 milhão de reais para 5,5 milhões de reais. Ou seja, “acrescentou-se” o que a organização já fazia, ao mesmo tempo em que a quantidade de dinheiro público entregue ao ente privado triplicou.
A investigação feita também revelou que, embora toda a gestão do SAMU tivesse sido transferida à organização privada, quem adquiria e fornecia os equipamentos de proteção individual utilizados pelos trabalhadores (empregados do ente privado contratado) era o município. Quer dizer, o município terceirizou o SAMU, pagando milhões a uma associação privada para que ela assumisse sua gestão, e por fora continuou arcando com parte dos custos do ente privado.
O MPT moveu uma ação civil pública em face da organização privada e do município, os quais foram condenados, em primeira instância, a não terceirizar a saúde pública.
O segundo caso de terceirização da saúde que chegou a meu conhecimento apresentava contornos ainda mais surpreendentes.
Uma fundação pública municipal, mantenedora de um hospital público, celebrou com o Ministério Público um termo de ajuste de conduta, comprometendo-se a apenas contratar trabalhadores para esse hospital mediante concurso. O concurso público chegou a ser realizado e seu resultado foi homologado.
Ocorre que, em vez de chamar os candidatos já aprovados no concurso, a fundação resolveu terceirizar, em segredo (ocultando o fato ao Ministério Público), os postos de trabalho, mediante a contratação de uma organização social, descumprindo assim o termo de ajuste celebrado.
A investigação realizada, quando enfim foi descoberta a terceirização iniciada em segredo, revelou que:
> a contratação havia se dado de forma dirigida, tendo sido encaminhado convite a uma só organização social;
> não foi cobrado da organização a demonstração de capacidade técnica ou perícia;
> o preço cobrado pelo ente privado, e pago pela fundação pública, superior a 3 milhões de reais, não foi objeto de qualquer justificativa. Quer dizer, nada era dito a respeito das parcelas de custo que integravam e portanto justificavam o preço, o qual foi instantaneamente aceito pelo administrador público. O ofício da organização privada, informando o preço pretendido, foi apresentado em um dia, e nesse mesmo dia o responsável pela fundação já estava solicitando a contratação, com dispensa de licitação, pelo valor exigido;
> o convênio foi prorrogado com ofensa direta à lei, vício que foi detectado pela procuradoria do município, a qual, apesar de reconhecer a vedação legal, opinou em parecer pela prorrogação “de forma excepcional”;
> as contas apresentadas mensalmente pela organização social não eram submetidas a nenhum tipo de análise, ou seja, não havia o menor cuidado em se verificar se o dinheiro público estava sendo bem gasto;
> após o término da prorrogação ilegal do convênio, as partes celebraram um contrato de prestação de serviços, para permitir a continuidade da terceirização do hospital público, sendo que tal contratação acabou revelando que no preço do convênio (exatamente o mesmo do subsequente contrato) estava incluída uma taxa de administração oculta de 15%, a qual é rigorosamente proibida em convênios;
> a organização social não providenciou inicialmente o registro de seus empregados e o recolhimento do FGTS, ilícitos que não chamaram a atenção da fundação tomadora dos serviços.
Muitas outras infrações foram cometidas nesse caso, o que conduziu à propositura de cinco ações judiciais pelo Ministério Público do Trabalho, além de outras pelo Ministério Público Estadual. Em uma delas, a organização social envolvida já foi condenada, em primeira instância, a não fornecer mão de obra à terceirização da saúde pública, salvo quando estiver efetivamente presente, como exige a Constituição Federal, o caráter complementar dos serviços prestados.
O terceiro caso de terceirização da saúde dizia respeito à terceirização, em outro município, de um setor inteiro (responsável pela radiologia e outros exames) de um hospital público.
Inspeção realizada pela Auditoria Fiscal do Trabalho havia flagrado caso de fraude trabalhista conhecida como “pejotização”: todos os empregados da empresa terceirizada, que cumpriam ordens e horários, apareciam formalmente como “sócios” da empresa, portanto com supressão do registro do contrato de trabalho e de todos os direitos trabalhistas.
O município responsável pelo hospital foi alertado pelo Ministério Público sobre tais fatos e prometeu (tendo sido a promessa apresentada por escrito) que encerraria a contratação com a empresa. O que o município efetivamente fez, alguns meses depois, foi prorrogar a terceirização com essa mesma empresa, sabidamente autora de fraude trabalhista.
Foi movida uma ação civil pública em face do município, sendo que nos autos desse processo veio à tona que o município havia aprofundado a terceirização da saúde. Em vez de terceirizar apenas um setor, tinha agora passado a terceirizar, a um custo superior a 8 milhões de reais por ano, uma unidade inteira de saúde.
Em outro caso, um município deixou evidente sua intenção de, a pretexto de experimentar uma “falta de médicos”, terceirizar toda a sua principal unidade de saúde (inclusive, portanto, postos de trabalho que não os de médico, como enfermeiros e técnicos).
A prova documental trazida ao conhecimento do Ministério Público por representantes da própria administração municipal revelou, entretanto, que não havia carência de médicos contratados pelo município. O que vinha ocorrendo é que a maioria dos médicos lotados nessa unidade estava se recusando a cumprir sua jornada (já reduzida, de apenas 80 horas mensais), e simplesmente não comparecia aos plantões nos quais deveriam trabalhar, deixando a população desassistida, ou então compareciam no início da jornada, registravam sua entrada no relógio de ponto, e imediatamente iam embora, por vezes para realizar atendimentos particulares.
Veio à tona durante a instrução do feito, também, que nos finais de semana e à noite, horários nos quais a maioria das pessoas tem desinteresse em trabalhar, a unidade de saúde não sofria com qualquer falta de médicos, sendo significativo que nesses horários a diária paga aos profissionais era bem maior que a remuneração paga pela jornada diurna em dias úteis.
Os fatos e provas indicavam, portanto, a atuação de um grupo de médicos, servidores com vínculo de emprego com o município, que buscava “fabricar”, “orquestrar” uma situação de crise capaz de justificar a contratação, pela administração pública, de uma organização social privada, a qual seria, é claro, gerida pelos próprios médicos, o que lhes garantiria auferir remuneração maior – sendo que todo o custo acabaria sendo suportado pelo erário –, permitindo ainda que cada médico viesse a trabalhar quando quisesse, quanto quisesse e se quisesse.
O chefe do poder executivo, sabendo de todos esses fatos, não punia os servidores desidiosos e insistia na terceirização como única solução para os problemas, não obstante houvesse inclusive candidatos aprovados em concurso público para o cargo de médico aguardando nomeação, os quais o município se recusava a convocar.
O caso seguinte que chegou a meu conhecimento, relacionado à terceirização da saúde, apresentou contornos nada menos que surreais, “kafkianos”.
A partir de uma ação trabalhista individual, o MPT descobriu que certo município praticava a terceirização de todos os postos de trabalho da saúde pública, mediante a contratação da associação dos funcionários municipais dessa mesma cidade. Quer dizer, a associação dos funcionários, cujo papel é defender os direitos dos servidores, tornara-se empregadora dos servidores. Mas esse era o menor dos problemas ocorridos.
Requisitou o Ministério Público ao município cópia do instrumento de contrato ou convênio/parceria firmado com a associação, cópia dos processos administrativos relacionados à contratação, lista dos trabalhadores terceirizados, e valor total dos repasses feitos ao ente privado desde o início da terceirização.
Através de petição, o município afirmou, inacreditavelmente, que não dispunha dos documentos pedidos, que estariam em poder de escritórios de contabilidade contratados pela associação. Apresentou-se apenas extratos de empenho de quatro anos (sendo que a terceirização já existia há 13 anos), os quais revelaram repasses ao ente privado superiores a 4 milhões de reais.
Veja-se então que milhões de reais de dinheiro público foram repassados a um ente privado sem que o município, que fez os pagamentos, dispusesse dos procedimentos administrativos relacionados à contratação, ou mesmo de cópia dos instrumentos de convênio/contrato.
O MPT requisitou então tais documentos, além de outros, à associação dos servidores, que seria prestadora de serviços terceirizados do município. A associação apresentou uma resposta que não continha nenhum dos documentos exigidos.
Ou seja, temos aqui uma terceirização integral da saúde pública, através da qual milhões de reais de dinheiro público foram repassados a um ente privado, e nenhuma das partes dispõe sequer do documento em razão do qual o dinheiro público está sendo pago!
Descobriu-se, também, que a associação contratava trabalhadores através de editais publicados em jornal pelo próprio município, os quais mencionavam, de forma expressa, que a contratação pela associação era para “provimento do emprego público temporário”.
Mas não é só: a investigação realizada revelou que, durante diversos anos, o representante legal da associação, que assinava documentos (inclusive cheques) como seu presidente, ocupava ao mesmo tempo o cargo de secretário municipal da saúde.
Percebe-se que o que ocorreu nesse caso não foi apenas uma terceirização, mas a apropriação e incorporação de um ente privado pelo município, funcionando a associação, na prática, como um órgão municipal, um prolongamento da secretaria municipal de saúde, conseguindo-se com isso facilitar a transferência de milhões de reais dos cofres públicos para bolsos privados.
No último e mais recente caso de terceirização da saúde a chegar a meu conhecimento, requisitou-se ao município, após a descoberta de infrações a normas de saúde e segurança em seu hospital público, que apresentasse cópia do contrato firmado com uma organização social. O município inicialmente não apresentou qualquer resposta, depois negou categoricamente a existência da terceirização, e por fim acabou a admitindo.
À semelhança do primeiro caso que mencionei, o contrato de gestão apresentado informava objeto completamente genérico, que não permitia a identificação do que, efetivamente, estava sendo assumido pelo ente privado. Mas o preço era indicado com precisão: mais de 5,5 milhões de reais por ano.
Chamou a atenção, em particular, uma cláusula constante no contrato: “A contratante poderá ceder servidores públicos municipais para prestar seus serviços junto à contratada, ficando garantido a esses servidores o vínculo original com a contratante”.
Reflita-se sobre o significado disso: então a saúde pública é terceirizada, sendo a gestão transferida a um ente privado por um custo superior a 5,5 milhões, e a prestadora dos serviços terceirizados não terá sequer que contratar empregados, pois poderá utilizar funcionários do próprio ente público que é (supostamente) tomador desses serviços?
Quero chamar a atenção do leitor para uma circunstância a respeito dos relatos que acabo de apresentar: não fiz aqui uma seleção de casos. Não escolhi, dentre as situações de terceirização da saúde que chegaram a meu conhecimento nos últimos anos, aquelas mais graves. Não, o relato acima menciona todos os casos de terceirização da saúde pública que já chegaram a meu conhecimento desde que passei a atuar perante a Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara, cujo território alcança 28 municípios, há quatro anos.
Em nenhuma dessas situações, aliás, houve denúncia apresentada ao MPT relacionada diretamente à terceirização, o que explica em parte o número relativamente pequeno de casos. Em todas as situações referidas, ou o Ministério Público tomou conhecimento dos fatos por conta própria (o que ocorre quase que por acidente, ao se ler uma notícia no jornal ou na internet), ou a denúncia que ensejou a instauração do procedimento dizia respeito a outros assuntos (meio ambiente do trabalho, fraudes trabalhistas, etc.), ampliando-se depois a investigação à vista das provas trazidas aos autos.
Isso significa que em todos os casos de terceirização da saúde pública que, mediante distribuição, chegaram ao conhecimento de um procurador do trabalho em Araraquara, em uma região tida como muito desenvolvida do país, surgiram evidências contundentes de irregularidades na contratação, mau uso e/ou desvio de dinheiro público, isso a par do fato de tais situações constituírem também hipóteses de terceirização ilícita da atividade-fim do estado, lesivas aos trabalhadores.
Se as situações que chegam ao conhecimento do Ministério Público constituem uma amostra de como funcionam as terceirizações da saúde pública de um modo geral, então não precisamos procurar por razões adicionais para a verdadeira hecatombe que se abateu sobre a saúde pública no país: as terceirizações funcionam como um ralo através do qual escorre, ilegal e imoralmente, o dinheiro público que, na outra ponta do sistema, não chega à população, sob a forma da prestação de serviços minimamente decentes.
O estado brasileiro gasta pouco com saúde pública (segundo a Organização Mundial da Saúde, a União gasta em torno de 8,7% de seu orçamento com saúde, menos que a média mundial, que é de 11,7%, e menos até que a média dos países africanos, que é de 10,6%), e o que gasta escorre em crescentes quantidades pelo ralo das terceirizações, transferindo-se dinheiro público de forma imoral a entes privados sem qualquer incremento na qualidade do serviço prestado à população.
A conclusão a que chego é que como regra as terceirizações da saúde, longe de representarem instrumentos capazes de contribuir à melhoria da saúde pública, constituem um câncer que está a fomentar a corrupção na administração pública, facilitando a dispersão em larga escala do dinheiro público que deveriam financiar o atendimento da população.
Tais terceirizações merecem, portanto, gerar profunda indignação e imediata reação em todas as pessoas que se preocupam com a vida e a dignidade humana.
CONCLUSÃO
O prejuízo financeiro causado pela privatização da saúde pública é mensurável, mas o prejuízo social causado por essa prática é incalculável.
A terceirização impede o SUS de alcançar seus objetivos universais de atendimento à população, pois leva os profissionais da saúde, principal força motriz do sistema, desestimulados pela falta de estabilidade e baixa remuneração, a deixar de acreditar na saúde pública como elemento de emancipação do ser humano. A seleção injusta e a descontinuidade dos profissionais das técnicas radiológicas impede todo avanço.
É necessário ter vontade política, inteligência administrativa, coragem, clareza e dedicação para romper com este modelo de contratação e promover concursos públicos transparentes, com vagas efetivas, vencimentos dignos e condições de trabalho para profissionais da saúde se responsabilizarem pela saúde da população.
No Brasil, já existem exemplos de cidades que conseguiram entender nosso argumento e hoje colhem os frutos do investimento nas pessoas certas.
A Prefeitura de Ribeirão Pires/SP, depois de enfrentar muitos problemas denunciados pelos meios de comunicação da cidade, resolveu acabar com as terceirizações. Promoveu concursos públicos transparentes, em conformidade com as leis vigentes no país, protegendo e beneficiando centenas de profissionais que se mantinham à merce das vaidades dos administradores de empresas terceirizadas que sucatearam e destruíram a saúde.
Hoje, tudo funciona bem.
FONTE: CONTER
http://www.conter.gov.br