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Pesquisa mensura peso do HIV no aborto


Intitulado “HIV/Aids e trajetórias reprodutivas de mulheres brasileiras”, o primeiro estudo no país a analisar especificamente o aborto induzido entre mulheres vivendo com HIV traz uma revelação surpreendente: elas recorrem ao aborto induzido por razões parecidas àquelas apresentadas por mulheres não portadoras do vírus. O fato de ser soropositiva não é, portanto, o motivo central e nem mesmo o único apresentado para justificar a interrupção da gravidez. Apesar da importância do diagnóstico na decisão de abortar, para a maioria das mulheres vivendo com HIV/Aids esta foi somente uma entre muitas outras razões de ordem social, pessoal e afetiva. Um dos aspectos mais importantes mencionados foi a relação com o parceiro: ter ou não um homem que pudesse dividir a responsabilidade de criar a criança foi um fator fundamental que influenciou a decisão de manter ou interromper a gravidez.

Coordenado por Regina Maria Barbosa, médica com doutorado em saúde coletiva e especialista em saúde reprodutiva e sexual, do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp, o estudo foi financiado pelo CNPq e contou com a parceria do Centro de Referência em DST/Aids de São Paulo e com a participação de pesquisadores de várias instituições de pesquisa. Os dados foram obtidos por meio de dois estudos complementares: uma pesquisa transversal, implementada em 13 cidades brasileiras de novembro de 2003 a dezembro de 2004, a qual incluiu 1.777 portadoras e 2.045 não portadoras; e um estudo qualitativo que realizou, entre 2009 e 2010, entrevistas detalhadas com 85 mulheres de 18 a 47 anos, pertencentes aos estratos médios e populares da sociedade e vivendo com o vírus HIV, em seis cidades localizadas nas cinco regiões geográficas do país.

Estas informações revelaram que 13,3% das portadoras já haviam recorrido ao aborto induzido, enquanto 11% das não portadoras fizeram o mesmo – uma diferença de somente 2.3%. A idade (a porcentagem de abortos induzidos por mulheres mais velhas é maior), a idade na qual as mulheres tiveram sua primeira experiência sexual (abaixo de 17 anos), a ocorrência de três ou mais parceiros durante a vida sexual e o fato de terem sofrido violência sexual foram aspectos associados ao aborto induzido nos dois grupos.

Os resultados da análise sugeriram que fatores similares influenciam o processo decisório reprodutivo em ambas as situações, entre os quais: o acesso limitado a serviços de saúde reprodutiva e planejamento familiar; o desconhecimento em relação aos métodos contraceptivos (regulares e de emergência) e a iniquidade social e de gênero – como a que coloca a contracepção como responsabilidade da mulher e não do homem.

A pesquisa qualitativa demonstrou que, para a maioria das portadoras, a decisão de induzir um aborto nem sempre foi tomada pelo fato de estar infectada com o vírus HIV e este não foi o único fator determinante desta decisão. “Estas mulheres foram influenciadas por fatores que vão além do nível individual e envolvem valores culturais relacionados à maternidade, aos valores morais, relações interpessoais e circunstâncias específicas relacionadas ao HIV e à gravidez. Os resultados indicaram que há similaridades e correlações entre os contextos associados com a infecção por HIV e as práticas e decisões reprodutivas”, explica Regina. Ela enfatiza, ainda, que pesquisadores e profissionais do serviço de saúde devem considerar estes dois contextos conjuntamente para que possam entender melhor as decisões reprodutivas das mulheres que vivem com HIV/Aids e assim oferecer o suporte que elas necessitam, especialmente em casos de gravidez indesejada.

O trabalho aponta que, entre os diversos fatores que contribuem para aumentar a vulnerabilidade das mulheres ao HIV, à Aids e à gravidez indesejada está na dificuldade dos profissionais da saúde de discutir abertamente desejos e necessidades sexuais e reprodutivas de mulheres e homens vivendo com HIV e ir além da mera prescrição de uso de preservativo em todas as relações sexuais. De acordo com a especialista, esta questão poderia ser resolvida com intervenções concretas, como o oferecimento de treinamento adequado e a reestruturação dos serviços de saúde. “Entender as decisões das mulheres com HIV/AIDS relacionadas à reprodução, contracepção e aborto exige pensar sobre os mais variados aspectos que interferem em suas escolhas nesta área. As mulheres optam por manter ou não uma gravidez levando em consideração fatores que vão além do desejo individual de procriar”, afirma.

A linha de pesquisa do Nepo na qual o trabalho foi desenvolvido é chamada “Saúde Reprodutiva e Sexualidade” e trabalha com um conceito que compreende saúde reprodutiva como um estado completo de bem-estar físico, mental e social em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos e não como a simples ausência de doença ou enfermidade. Esta linha de pesquisa faz parte do Nepo desde a data de sua criação, em 1982, é formada por pesquisadores de diferentes áreas (médicos, antropólogos, psicólogos, cientistas sociais, estatísticos) e tem contribuído de maneira determinante para a produção de conhecimentos e capacitação de recursos humanos no país.

Segundo o estudo, as mulheres representam 35% dos 597 mil casos conhecidos de Aids em 2010 no Brasil, sendo que, assim como em outros países, mulheres jovens na idade reprodutiva têm sido especialmente afetadas pela epidemia de HIV. A maioria das brasileiras portadoras do vírus tem baixos níveis de educação e renda e apresenta dificuldades para negociar o uso do preservativo com seus parceiros. Elas também iniciaram a vida sexual mais cedo e, mesmo depois de diagnosticadas com o vírus, continuam com uma frequência baixa de uso da camisinha. Além disso, uma grande proporção de mulheres HIV positivas já usou drogas e tem um histórico de doenças sexualmente transmissíveis, além de ter sido vítima de violência sexual em algum momento da vida.

O advento e o acesso à terapia antirretroviral transformaram a Aids em uma doença crônica e têm contribuído para que mulheres infectadas pelo vírus possam viver uma vida mais longa e saudável, assim como para a diminuição do risco de transmissão do vírus da mãe para o bebê. Isto estaria, então, alterando o contexto dentro do qual as mães decidem ter ou não a criança e, ao mesmo tempo, colocando desafios a ser enfrentados, em termos de direitos sexuais e reprodutivos que, segundo o estudo, precisariam ser discutidos. “Adotar este ponto de vista significa reconhecer que estas mulheres têm o direito de desfrutar de uma vida sexual, caso desejem, e escolher se, quando, com quem e como elas terão filhos, sendo capazes de exercer estas escolhas de maneira segura e com um risco mínimo à saúde”, afirma a pesquisadora do Nepo.

Regina também lembra que as leis brasileiras são bastante restritivas e abortar devido à infecção por HIV é considerado, portanto, ilegal. “Apesar disso, o aborto induzido é uma alternativa usada frequentemente no país. Há estudos que apontam que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já praticou pelo menos um aborto induzido durante a vida”.

Uma pesquisa conduzida pelo Ministério da Saúde em 2009 mostrou que o aborto no Brasil é feito principalmente por mulheres entre 20 e 29 anos de idade, com até oito anos de escolarização e que tem algum tipo de trabalho. O método de indução do aborto mais usado por estas mulheres é o consumo de citotec ou misoprostol, que é comprado no “mercado negro”, já que sua venda em farmácias está proibida desde 1998.

“O desejo de postergar a maternidade, a falta de condições econômicas para criar uma criança e de estabilidade na relação com o parceiro são razões comumente apontadas por elas para a prática do aborto, o qual é comumente descrito como uma experiência traumática, principalmente entre as mulheres mais pobres, que estão geralmente sozinhas, enfrentando esta situação de maneira clandestina e insegura, tanto em termos físicos quanto psicológicos”, afirma Regina Barbosa.

Segundo a pesquisadora, apesar dos avanços nos programas de prevenção da transmissão vertical do vírus (da mãe para o bebê), o estigma contra as pessoas com Aids ainda faz com que muitos profissionais acreditem que uma mulher soropositiva não deva ter filhos. De acordo com ela, para algumas portadoras, a decisão de abortar depois do diagnóstico está diretamente relacionada ao vírus, apesar de também estar associada a outras circunstâncias da vida.

Entretanto, para outras, a decisão de fazer um aborto estava mais relacionada à falta de desejo de estar grávida naquele momento da vida. “Para estas mulheres que já têm que lidar com o estigma relacionado ao vírus, recusar uma gravidez por não querer lidar com o peso da maternidade naquele momento, ao invés de querer proteger a vida futura de seus filhos ou sua saúde, traz de volta a discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Portanto, não se trata somente de solidariedade com mulheres vivendo em contextos extremamente difíceis, mas também um reconhecimento do direito de abortar em qualquer circunstância como um requisito para a cidadania plena destas mulheres”, finaliza.

Os detalhes dessa pesquisa poderão ser acessados em breve em dois artigos, previstos para serem publicados em julho, nas revistas Reproductive Health Matters e Ciência e Saúde Coletiva. Antes disso, porém, seus resultados estarão sendo apresentados para profissionais e gestores das Secretarias Estadual e Municipal de Saúde de São Paulo, no próximo dia 24 de maio, no Seminário “Saúde e direitos reprodutivos no contexto da epidemia de HIV/Aids: incorporando o conhecimento às ações de cuidado” (maiores informações em http://www.nepo.unicamp.br).

FONTE: Jornal da UNICAMP