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Pesquisas identificam novos compostos para tratamento da anemia falciforme

Trabalhos rendem prêmios e publicação de artigos em revistas internacionais

Um esforço conjunto de pesquisadores da Unicamp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em encontrar compostos que venham a resultar em novos fármacos efi cazes no tratamento da anemia falciforme tem suscitado publicação de artigos em periódicos internacionais, prêmios em congressos nacionais e internacionais e depósito de patente. De acordo com a farmacêutica Carolina Lanaro, orientada em seu pós-doutorado pelo reitor da Unicamp, professor Fernando Costa, a molécula patenteada pela Agência de Inovação Inova Unicamp Inova Unicamp reúne três efeitos importantes que são analgésico, antiinflamatório e capacidade de aumentar os níveis de hemoglobina fetal. Segundo Carolina, o aumento da concentração de hemoglobina fetal tem sido o principal foco dos pesquisadores, pois quanto maior a quantidade desta proteína em pacientes com anemia falciforme, menor serão os níveis de hemoglobina S, uma hemoglobina anômala que tem a capacidade de se polimerizar em baixa concentração de oxigênio ocasionando as crises vaso-oclusivas e os episódios de dor.

Após a obtenção da patente nacional e internacional, esses novos compostos foram testados (in vitro) em culturas de células K562 e células-tronco hematopoéticas (CD34+ ) e em camundongos transgênicos com anemia falciforme. A próxima etapa é a fase clínica na qual se faz necessária uma parceria com a indústria farmacêutica para que os compostos sejam encaminhados para a fase de testes em humanos e fabricação de remédios. Os principais pesquisadores do projeto são os professores da Unesp Jean Leandro dos Santos e Chung Man Chin, o reitor da Unicamp, Fernando Ferreira Costa, Carolina Lanaro e a professora Lídia Moreira Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo Carolina, a ideia, que partiu do professor Jean Leandro dos Santos, foi pegar o grupo farmacofórico da hidroxiureia e da talidomida, que têm suas atividades farmacológicas já descritas na literatura.

Entre essas moléculas foi colocado um espaçador e após diversas reações químicas foram obtidos seis novos compostos e destes, três foram enviados para os pesquisadores da Unicamp testarem. Ela acrescenta que não é possível afirmar as vantagens em relação à hidroxiureia, medicamento aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) para tratamento oncohematológico que motivou as pesquisas com hemoglobina fetal, mas um dos compostos se mostrou eficiente tanto na indução de hemoglobina fetal quanto no efeito antiinflamatório, o que, segundo Carolina, pode refletir em benefícios aos pacientes. “É uma molécula totalmente brasileira, de universidades estaduais e federal”. Segundo Carolina, pacientes tratados com hidroxiureia apresentam aumento nos níveis de hemoglobina fetal e, consequentemente, melhora no quadro clínico da doença. Mas ela enfatiza que como se trata de um medicamento quimioterápico, apesar do efeito benéfi co, a droga pode provocar efeitos colaterais. Embora a doença seja causada por uma única mutação, há pacientes que respondem ao tratamento com hidroxiureia e outros não, assim como há pacientes com uma clínica estável enquanto outros são mais graves, explica Carolina.

Prêmios

Mas os testes não param por aí, pois os pesquisadores pretendem investir cada vez mais em estudos que tragam novas perspectivas para o tratamento dos pacientes com anemia falciforme. O resultado mais recente está na pesquisa de doutorado de Camila Almeida, realizada em parceria com o professor Paul Frenette, diretor do Colégio de Medicina Albert Einstein, em Nova York. Nesse projeto, os pesquisadores observaram, em experimentos com camundongos portadores de anemia falciforme, que a hidroxiureia, quando administrada em dose aguda, diminui o processo inflamatório, levando a uma melhora nos mecanismos de vaso-oclusão, comumente observado nos pacientes falciformes. Resposta ainda mais proeminente foi obtida na interação dessa droga com um inibidor de PDE9, segundo Camila. Ela explica que o inibidor de PDE9 atua em sinergismo com a hidroxiureia levando a uma redução na adesão de células ao endotélio vascular ativado, diminuição das interações entre células brancas e vermelhas e consequentemente melhorando o fl uxo sanguíneo na microcirculação e reduzindo ainda mais o quadro infl amatório presente nos camundongos falciformes. A combinação dessas drogas permitiu um aumento signifi cativo na sobrevida dos camundongos. “A ideia é voltar a Nova York para desenvolver outros experimentos que, em conjunto com os dados já obtidos, nos permitam concluir um artigo, dando enfoque à hidroxiureia”, complementa Camila.

Em junho deste ano, o trabalho relacionado à pesquisa de Camila foi premiado no 16º Congresso da Associação Europeia de Hematologia, em Londres. Em 2010, a pesquisa obteve o prêmio máximo no Congresso da Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (considerado o maior congresso da especialidade na América Latina). Segundo a orientadora da tese de Camila, professora Nicola Conran Zorzetto, até então, a droga era utilizada apenas para tratamento crônico dos pacientes, mas Camila descobriu uma possível alternativa de aplicação da droga, mostrando que ela pode ser utilizada tanto para o tratamento crônico como em tratamentos imediatos em momentos de crise, no entanto, futuros estudos são necessários para estabelecer esse novo uso da droga.

As pesquisadoras pontuam que os camundongos falciformes não apresentam hemoglobina fetal. Assim sendo, os efeitos benéficos observados com a utilização aguda dessas drogas – como, por exemplo, a redução da adesão de células brancas e vermelhas ao endotélio ativado, melhora no processo vaso-oclusivo e consequentemente a inflamação – são resultados provenientes do tratamento com hidroxiureia que independeram do aumento de hemoglobina fetal.

Além de encontrarem no Laboratório de Hemoglobina e Genoma do Hemocentro a satisfação em obter resultados efetivos na melhoria da qualidade de tratamento de pacientes, Carolina e a pós-doutoranda Carla Fernanda Franco Penteado desenvolveram parte de suas pesquisas com esses novos compostos na Georgia Health Science University, no Estado da Georgia, nos Estados Unidos. Com a colaboração dos professores Abdullah Kutlar, conhecido na área, e Steffen Meiler, animais transgênicos para a anemia falciforme foram tratados cronicamente por oito semanas com os três compostos e, além disso, foram feitas culturas para estimular a produção de citocinas utilizando as células de camundongos transgênicos, a fim de avaliar a atividade anti-inflamatória dos compostos.

Ela explica que o modelo in vivo com o qual trabalhou permite realizar testes com drogas que possam induzir a expressão de hemoglobina fetal. Os resultados obtidos com essa colaboração foram apresentados em dezembro de 2010 no Congresso Americano de Hematologia em Orlando e foi premiado. Trabalho publicado em 2009 no Journal of Leukocyte Biology demonstrou que pacientes com anemia falciforme apresentam aumento signifi cativo nos níveis plasmáticos de citocinas infl amatórias, como: interleucina-8, fator de necrose tumoral-alfa, prostaglandina E2.

Os estudos dos novos compostos foram ampliados na tese de doutorado da aluna Sheley Gambero, do Departamento de Fisiopatologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (FCM), orientada pelo professor Fernando Costa. O trabalho no qual foram avaliados os efeitos sobre a quimiotaxia, a produção de espécies reativas de oxigênio e vias de regulação gênica de gamaglobinas apresenta resultados promissores, pois, de acordo com Sheley, uma das moléculas mostrou, in vitro, atividade em concentração menor em relação à utilizada com hidroxiureia. Testes realizados com as moléculas de hidroxiureia e talidomina, que deram origem aos novos compostos, não apresentaram o mesmo efeito observado com a molécula sintetizada em laboratório.

Aconselhamento genético é importante

A anemia falciforme é uma doença hereditária. Por este motivo, a gestação em casais portadores do traço falciforme (em que pouco menos da metade da hemoglobina é do tipo que predispõe à doença, ainda que o homem ou a mulher não a manifeste) apresenta um risco de 25% para o nascimento de uma criança portadora de anemia falciforme. Daí a importância de indicar aconselhamento genético antes do planejamento de fi lhos.

A doença é provocada por uma alteração genética na hemoglobina que leva à deformação das hemácias (glóbulos vermelhos) dando a elas a forma de foice ou meia-lua após a redução na quantidade de oxigênio. A hemoglobina, molécula que dá cor vermelha ao sangue, tem a função de transportar o oxigênio dos pulmões aos tecidos. Para poder passar facilmente por todos os vasos sanguíneos, mesmo os mais finos, as hemácias são arredondadas e elásticas, mas a alteração ocorrida na hemoglobina, em pacientes falciformes, faz com que essas células se deformem, tornando-se mais rígidas ou endurecidas, com tendência a formar grupos que podem fechar os pequenos vasos sanguíneos, difi cultando a circulação do sangue. Isso pode gerar lesões em qualquer órgão do corpo.

A detecção da anemia falciforme é feita por meio do exame eletroforese de hemoglobina ou exame de DNA. Fernando Costa faz questão de ressaltar que o diagnóstico com o teste do pezinho, logo ao nascer, é muito importante para que, desde cedo, o paciente tenha seguimento médico adequado que inclui, entre outras medidas, vacinação específi ca e antibiótica – terapia profi lática.

Trabalho foi sugerido por portador da doença

O desejo de um aluno de iniciação científica da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), portador de anemia falciforme, de desenvolver novos compostos contra a doença em sua pesquisa de graduação deu origem a um esforço coletivo dos pesquisadores para buscar meios para amenizar e aprimorar o tratamento de pacientes portadores da doença. Impossibilitado de dar continuidade ao projeto por causa da intensifi cação de crises relacionadas à doença, o aluno teve seu projeto continuado pelas mãos desses pesquisadores, primeiramente pelo professor da Unesp Jean Leandro dos Santos, que dedicou sua dissertação de mestrado ao desenvolvimento de novos compostos. O interesse e o convite para a parceria por parte de Santos foi motivado pelo trabalho publicado pela professora Nicola, em 2006, sob orientação do reitor Fernando Costa, em que ela oferece melhor compreensão do mecanismo pelo qual a hidroxiureia atua na produção da hemoglobina fetal em pacientes tratados com o medicamento.

Na pesquisa, ela encontrou nas células de pacientes que faziam uso da droga um nível alto da molécula GMPc (guanosina monofosfato cíclica ou GMPc), cujo aumento pode contribuir na elevação da produção de hemoglobina fetal, de acordo com dados divulgados em 2001 por um grupo de Boston (EUA). Segundo Carolina, a ideia de Santos era totalmente inovadora e como no doutorado ela havia trabalhado com cultura de células, decidiram investir na área e testar os compostos desenvolvidos por ele.

Assim como o estudante que forçosamente abandonou a carreira acadêmica por causa das crises, cerca de 20 milhões de pessoas no mundo, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que convivem com a doença falciforme podem se benefi ciar com os resultados promissores das pesquisas. Diante desse número, os pesquisadores não se contentam apenas com os novos resultados e dão prosseguimento às pesquisas. Apesar de saberem que a única forma de curar esses pacientes é o transplante de medula, os pesquisadores encontraram no desenvolvimento de fármacos mais efi cientes para o tratamento a forma de desenvolver pesquisa básica aplicada em benefício da sociedade, na opinião de Nicola. Tanto para ela, quanto para as pesquisadoras Camila e Carolina, o Laboratório de Hemoglobina e Genoma é um dos que mais têm contribuído com a apresentação de bons resultados na área de hemoglobinopatias.

Sobrevida

O transplante de medula – hoje a única possibilidade de cura da anemia falciforme – não é um procedimento indicado para todos os casos, além da difi culdade em encontrar doadores compatíveis. Diante dessa realidade, os cientistas investem em estudos que amenizem as dores, as úlceras, as lesões crônicas de órgãos e o abandono das atividades sociais que acompanham o paciente falciforme durante uma vida inteira de cuidados médicos. “É um tratamento penoso de uma doença crônica para a vida toda, por isso temos de investir em medicamentos que melhorem a qualidade de vida desses pacientes, evitando as complicações causadas pela doença”, pontua Fernando Costa, especialista na investigação das características clínicas de doenças hereditárias dos glóbulos vermelhos e professor titular da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) em Hematologia e Hemoterapia.

Referência na área de estudos de hemoglobinopatias, Fernando Costa explica que as dores intensas em momentos de crise impedem que alguns pacientes se dediquem a suas atividades diárias, entre elas trabalho e estudo. “Alguns pacientes, além de numerosas outras complicações mais graves, podem também desenvolver úlceras nas pernas, o que pode levar a sério comprometimento do estado psicológico, principalmente entre mulheres e adolescentes”, acrescenta.

Mais que garantir qualidade no tratamento, as pesquisas com novas drogas sinalizam para o aumento da sobrevida de pacientes falciformes, segundo o hematologista. O aumento da sobrevida proporcionado pelo hidroxiureia, por exemplo, já está descrito em alguns estudos. Mas as pesquisas recentes relevam potenciais drogas que poderiam ser mais efi cazes que este medicamento ou que possam ser usadas em conjunto com ele. O hematologista acrescenta que, em pesquisa de pós-doutorado desenvolvida por Andréia Canali, outro medicamento, a sinvastatina, mostrou-se eficiente em testes in vitro. Os resultados sugerem que o medicamento foi capaz de reduzir a ativação endotelial e por consequência a adesão de leucócitos em modelo desenvolvido pela pesquisadora. O estudo mostra que quando as células endoteliais foram tratadas com sinvastatina houve diminuição na adesão de neutrófi los de pacientes com anemia falciforme quando comparado às células não-tratadas com o fármaco.

A busca por novos medicamentos no Hemocentro tem reunido pesquisadores de diversas partes do mundo, segundo Fernando Costa. “Essas pesquisas com novas drogas apresentam grandes vantagens quando desenvolvidas com pesquisadores de várias instituições, pois cada um tem uma informação importante a acrescentar”, declara.

E é justamente na busca de diagnosticar e tratar as complicações das hemoglobinopatias que o Hemocentro e o Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp mantêm uma tradição de mais de 25 anos na investigação e no tratamento de diversas doenças hematológicas hereditárias e adquiridas, tornando-se referência nacional e internacional, segundo Fernando Costa. O centro oferece atendimento e acompanhamento a centenas de pacientes com doença falciforme e outras hemoglobinopatias em seus ambulatórios.

A eficiência nos resultados das pesquisas faz com que o Hemocentro seja procurado por vários pesquisadores para o desenvolvimento de projetos em parceria. Costa enfatiza que o Laboratório de Hemoglobina e Genoma do Hemocentro há muito tempo desenvolve pesquisas básicas sobre fisiopatologia da doença, análise de novas terapias e epidemiologia entre outros aspectos da doença em colaboração com pesquisadores de vários estados do Brasil, entre os quais Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte, e também do exterior, sobretudo nos Estados Unidos e em países da América Latina.

Na região de São Paulo aproximadamente um em cada 4 mil recém-nascidos é portador de doença falciforme. Na região da Bahia, segundo dados do Ministério da Saúde, a proporção é maior, um para cada 650 recém-nascidos. A doença, originária da África, tem grande ocorrência em países onde houve a imigração forçada de populações africanas.

■ Publicações

Inhibition of phosphodiesterase 9A reduces cytokine-stimulated in vitro adhesion of neutrophils from sickle cell anemia individuals.
Miguel LI, Almeida CB, Traina F, Canalli AA, Dominical VM, Saad ST, Costa FF, Conran N. Infl amm Res. 60(7): 633-42, Jul. 2011.

Participation of Mac-1, LFA-1 and VLA-4 integrins in the in vitro adhesion of sickle cell disease neutrophils to endothelial layers, and reversal of adhesion by simvastatin.
Canalli AA, Proença RF, Franco-Penteado CF, Traina F, Sakamoto TM, Saad ST,
Conran N, Costa FF. Haematologica. 96(4): 526-33, Apr. 2011.

Design, Synthesis, and Pharmacological Evaluation of Novel Hybrid Com-pounds To Treat Sickle Cell Disease Symptoms.
Dos Santos JL, Lanaro C, Lima LM, Gambero S, Franco-Penteado CF, Alexandre-Moreira MS, Wade M, Yerigenahally S, Kutlar A, Meiler SE, Costa FF, Chung M. Journal Medicinal Chemistry – Julho 2011. (in press).

Tese de doutorado: “Papel dos leucócitos na fi siopatologia da anemia falciforme”
Autora: Camila Almeida
Orientadora: Nicola Conran Zorzetto
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Financiamento: Fapesp

FONTE: Jornal da UNICAMP
http://www.unicamp.br/